“O Congresso precisa de mais vozes que incorporem de fato as falas e os desejos dos negros e pobres”, avalia filiada ao Sindilegis no mês da Consciência Negra

Ester Monteiro, servidora do Senado Federal, é entrevistada pelo Sindicato e relata a árdua caminhada que o Brasil precisa percorrer para combater o racismo dentro e fora dos parlamentos

Há dez anos era sancionado o Estatuto da Igualdade Social no Brasil, por meio da Lei 12.288/10, mecanismo que só surgiu 122 anos após a assinatura da Lei Áurea. E se por um lado muito se avançou no combate à desigualdade racial, ao preconceito e à falta de oportunidades para a comunidade negra, por outro, o país ainda se encontra anos-luz de ser referência de uma democracia em termos raciais.

Buscando criar espaço para reflexão sobre essas e outras questões, o Senado Federal lançou, no dia 20 de julho – data em que o Estatuto da Igualdade Social completou 10 anos de existência – a campanha “Racismo em Pauta”. A iniciativa, encabeçada pelo Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça e da Secretaria de Comunicação Social (Secom), vem produzindo uma série de reportagens e conteúdos especiais com enfoque no racismo e na participação histórica dos negros na formação da sociedade. A campanha acontece até hoje, 20 de novembro, data em que se comemora o Dia da Consciência Negra.

A filiada ao Sindilegis Ester Monteiro da Silva, que é servidora do Senado Federal desde 2005 e também já foi da Câmara dos Deputados por 18 anos, foi a convidada de setembro para detalhar sua trajetória. Nascida em uma família simples e de múltipla diversidade racial, Monteiro já exerceu várias funções de chefia ao longo da carreira, dentro e fora da Casa. Em entrevista exclusiva ao Sindilegis, ela relata os percalços enfrentados durante a vida, como enxerga a representatividade dentro do Congresso e o que pode ser feito para mudar essa realidade. Confira!

Acho que a principal pergunta que eu gostaria de fazer é: como é ser uma mulher negra no Brasil nos dias de hoje?

Talvez o grau de dificuldade e os obstáculos se apresentem de forma diferenciada, mas é um grande desafio, como sempre foi. Na medida em que as desigualdades sociais, econômicas e culturais aumentam, as dificuldades se potencializam. Ser mulher já é lutar uma guerra em que as batalhas se sucedem ao longo de um dia inteiro, todos os dias, em diversas frentes. Some-se a isso ser negra, é como ter que ir para o enfrentamento sem armadura. Você está mais desprotegida.

O Estatuto da Igualdade Social no Brasil completou 10 anos em 2020. Porém, demorou 122 anos após a assinatura da Lei Áurea para esta lei ser aprovada. Na sua opinião, como vê atualmente os mecanismos legais para combater o racismo?

O Estatuto é uma conquista e com certeza a sociedade brasileira ainda não se deu conta da importância dele. Avalio que os mecanismos legais são muito relevantes para o resgate e a salvaguarda dos direitos daqueles que possam ser objeto do preconceito e do ódio por questão de cor, raça, gênero e religião – sem falar de outras tantas formas de impor e penalizar as diferenças entre os humanos. São avanços inquestionáveis. Mas entendo que são conquistas construídas na medida que a própria sociedade evolui. Para mim, ainda estamos longe de uma sociedade justa e igualitária, embora a caminho disso.

Mesmo com todo o debate, fatos e com o próprio STF tornando “legal” o racismo como crime, percebemos que uma grande parcela da sociedade ainda levanta questionamentos como “não existe dívida histórica”, “racismo acabou” e que “negros e brancos já têm oportunidades iguais”. Na sua visão, por que pensamentos e consequências assim ainda persistem?

Comportamentos como esses indicam justamente o quanto ainda temos que caminhar para mudar. Se por um lado temos pessoas que não estão conscientes dos direitos dos demais, temos também uma grande parcela que não se reconhece alvo do preconceito ou que, sofrendo ataques, não se sente em condição de reagir e mudar isso porque não tem conhecimento de seus próprios direitos nem apoio da sociedade e do Estado. E a forma como a sociedade trata essas pessoas ao longo de séculos, para preservar os meios de manter bens e ganhos materiais, reforça condutas que ajudam a reproduzir esses comportamentos. Ainda não conseguimos romper o círculo vicioso que nos impede de deixar a senzala e ocupar naturalmente espaços que conquistamos na nossa jornada por mais e melhores escolas, empregos e oportunidades, enquanto nós nos construímos como pessoas.

Ester no estúdio da Voz do Brasil (foto: Olívio Calábria

Você já exerceu diversas funções de chefia ao longo da carreira, dentro e fora do Senado. Já sentiu que sua cor de pele foi um empecilho para conquistar algumas dessas posições?

Diretamente, não. Mas fui alvo e ouvi comentários brincalhões como “nega esperta” ou “vai longe essa neguinha”, que carregam sentidos velados. Nem sempre o contexto e a autoria permitem identificar com clareza o preconceito. Também ouvi de colegas, em determinado momento da profissão, observações que deixavam a entender que o nosso lugar é mesmo subalterno e que não vamos ter chances melhores mesmo. Nunca me rendi. Tracei meu rumo, guerreei e posso dizer que venci. Uma vez enfrentei uma situação muito desconfortável que só mudou quando a pessoa por fim concluiu — ela disse isso — que eu era bem nascida, logicamente, de acordo com os parâmetros dela do que seja ser “bem nascido”. Talvez o fato de ter vivido desde o início da carreira entre jornalistas e políticos, especialmente em um momento em que o país vivia outros ares com a redemocratização, a anistia política e a volta dos exilados, tenha possibilitado um ambiente menos nocivo para mim.

Como você avaliaria a questão da representatividade negra tanto dentro do Senado Federal, por meio dos parlamentares, quanto no quesito do corpo técnico de servidores?

Há muito tempo um colega de um curso de pós-graduação quase brigou comigo discordando do meu entendimento de que temos um Congresso que espelha a sociedade: conservador e fechado para reformas como a sociedade o é. Não porque o eleitor tenha escolhido A ou B para impedir reformas. A relação eleito-eleitor, embora tenha se sofisticado ao longo dos 40 anos que acompanho a prática política, ainda se pauta pela mesma lógica do toma-lá-dá-cá ou de uma espécie de escambo que, se não usa moeda, sustenta ou justifica os dutos da corrupção. O Congresso é o que é porque a falta de conscientização e de mecanismos de esclarecimento, motivação e mobilização para a transformação impedem que o brasileiro que sofre a falta de moradia, saúde, escola e trabalho levante a voz e faça valer a sua vontade. Dessa forma, o Congresso continua sem representação que incorpore de fato as falas e os desejos reais da população negra e pobre. Precisamos de mais vozes nas Casas. A questão do corpo técnico sofre os efeitos dessa realidade. Comissionados são ligados a seus líderes e geralmente — isso é óbvio e natural pela relação de confiança — estão a serviço dos programas político-pessoais deles. Os servidores de carreira têm mais liberdade e podem influenciar mais para introduzir mudanças. E no que diz respeito a chegar a cargos de direção, então, nem precisa de estatística para constatar o reduzido número de negros que se destacam.

Na foto, os avós de Ester: Iracema e Jurandy Monteiro.

Atualmente vemos uma série de protestos contra violência racial que estão acontecendo nos EUA e no Brasil. A impressão que passa é que o tema só ganha destaque quando ocorre um grande caso. Como você acha que a discussão sobre violência racial poderia ser melhor inserida na sociedade?

Tudo tem a ver com a construção da sociedade do ponto de vista histórico e cultural. Educação e cultura são fundamentais para dar luz aos problemas e ampliar a discussão. Incluo aí os meios de comunicação que deveriam fomentar esses espaços de discussão. Quando se defende, por exemplo, o estudo da história de nossos antepassados, é, por exemplo,  para resgatar a identidade de um povo — e da sua descendência por séculos — rasgada à base do açoite que hoje não é físico, mas se materializa na ausência do Estado, em programas insípidos ou mal gerenciados, currículos escolares ruins. Quando o Estado não dá assistência à juventude negra, ela é encurralada nas favelas e jogada nas valas da violência e da morte no anonimato. Como os feitores faziam. Há momentos em que essa represa rompe. E hoje, com a propagação virulenta da informação devido às tecnologias, o vazamento ganha dimensões maiores e quase sempre que devem tomar mesmo esse volume para alertar o conjunto de que as coisas não vão tão bem quanto parecem. E a mensagem é essa: não pode esconder, escamotear, o que é claro no cotidiano das pessoas nas ruas das grandes cidades ou nos rincões do país. Os negros ainda sofrem por serem tratados como diferentes e não merecedores de melhores condições de vida, como os demais, em uma sociedade que, por isso mesmo, é de fato racista, ainda que não queira ou não se permita admitir.

Como o Senado poderia ajudar nisso?

O Senado tem feito a sua parte. Numa instituição historicamente elitista, tem rompido barreiras discutindo a questão. A criação do Grupo de Pró Equidade de Raça, o Plano de Equidade de Gênero e Raça, campanhas e ações específicas são instrumentos importantes para influenciar a realidade, dar voz a um grupo de servidores que, de outra forma, continuaria no anonimato e que pela vivência, experiência e conhecimento acumulados em vários campos podem influenciar o universo em que trabalham para dar mais clareza e favorecer novos modos de fazer as coisas.

Você é filiada ao Sindilegis. Em sua opinião, é papel do Sindicato lutar pela equidade de gênero e raça? Como engajar os representantes sindicais nesse debate?

Sou filiada desde a fundação do Sindilegis, ajudei a reunir assinaturas para a formação do Sindicato, por acreditar na organização dos trabalhadores para defender seus direitos e promover melhores condições de trabalho. Enquanto instituição representante da categoria, que reúne diferentes pensares e formas de agir e que carrega, é claro, a diversidade da própria sociedade, sim, o Sindicato deve lutar pela equidade de gênero e raça. Para engajar, se os dirigentes não conhecem na pele as dificuldades enfrentadas pelos servidores que sofrem o estigma das diferenças, devem tomar conhecimento do que as pessoas desse grupo passam, do que desejam e de como pensam que as coisas poderiam ser feitas. Para isso os representantes têm que chamar essas pessoas a participarem de debates e da definição de ações que possam influenciar e ajudar a transformar a realidade dos ambientes de trabalho, favorecer a formação e o aperfeiçoamento dos servidores.

Como você avalia as políticas públicas que existem atualmente voltadas à promoção dos direitos das mulheres e do enfrentamento ao racismo?

Todas são bem-vindas, como a política de cotas nas universidades e concursos, agora na reserva de recursos financeiros para candidatos a cargos eletivos; a legislação para coibir o feminicídio e outros crimes praticados contra as mulheres e minorias; as leis para tipificar e punir o racismo, entre tantas outras. Mas do que o povo brasileiro realmente carece é de reformas estruturais, sobretudo na educação. E que não tenhamos que ver passar em branco outros 130 anos para atingir o nível desejável de resgate das injustiças cometidas aos povos deslocados da África e seus descendentes. Na verdade, até aqui, temos uma lentidão que não é mais aceitável. É preciso acelerar. E através de políticas públicas podemos aumentar o ritmo das transformações. Por isso, acho preocupante o desmonte de estruturas públicas que atuam nessa área e a relativização da questão do racismo por parte de instituições governamentais.

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