Lembro bem do dia em que o céu ganhou uma estrela solitária. Era véspera de Natal, algo que para a maioria dos familiares deixava tudo mais difícil. Não para mim. Naquele dia em que ele foi embora, vi um embate de uma jornada de duas décadas e alguns anos se findar. Recusei veemente durante toda a vida os fortes e profundos traços que minha personalidade (e rosto) traziam do meu pai. A psicologia explica: não queremos ser parecidos com os nossos pais, essa figura de autoridade incompreensível e, por vezes, interpretada por nós como ultrapassadas. A maturidade muda isso – ou um grande e surpreendente acontecimento.
Era 24 de dezembro quando toda essa resistência se quebrou. Outras coisas também se quebraram neste dia, inclusive nossa ligação física que teve a ruptura no exato momento em que ouvi o grunhindo que a falta de voz e o nó na garganta da minha mãe fez. Eu e meus familiares nos sentamos no quintal de casa, ao final do dia, após nos despedirmos do grande, fofo e alto corpo dele. Ninguém havia planejado, porém, um alimento para aquela ceia tão amarga. Com todo o comércio fechado, restou-nos o café com bolo. Não importava! Aliás, o estômago até recusava qualquer carícia alimentícia ou afago.
Dentre uma oração e outra alguém suspirou e disse: – E tinha que ser no Natal? Ao que eu tão impulsiva e cheia de opinião como meu pai, retruquei: – Não é uma data incrível para isso acontecer? Logo todos os olhos se voltaram para mim. Bom, eu estava acostumada, pois, assim como meu pai, sempre gostei de quebrar paradigmas e questionar padrões.
Um dos meus familiares mais conservadores ajeitou a roupa e entortou o nariz. Outra balançou a cabeça em reprovação e fingiu tomar o resto do café que era apenas uma gota no fundo da xícara. Minha mãe me cutucou forte por baixo da mesa. Ignorando-a, continuei: – Meu pai amava isso… Todos juntos, conversando, jogando na mesa as diferenças. Ele promovia esses encontros sempre que podia e aqui estamos nós, unidos pela dor, mas ligados nas nossas diferenças. Estamos aqui realizando, talvez pela primeira vez, um Natal de verdade. Um encontro honesto, onde muito mais que comidas, decoração e presentes o que mais vale é o ombro, a presença e a voz do outro. Estamos aqui hoje também porque meu pai morreu, mas segundo o que me ensinou, está bem melhor agora. Não consigo imaginar outra data mais incrível para que meu pai se despedisse desta que ele chamava de estrada passageira.
Apesar do acontecimento recente, não me lembro do que sucedeu depois desse (inconveniente) discurso. O que restava em mim era o orgulho que tive de ter tido um pai tão incrível, sensível, por vezes poeta, por vezes compositor ou editor dos meus textos. Apenas orgulho e gratidão de ter ouvido por inúmeras vezes aquele timbre do Tim Maia que ecoava da cozinha para a sala; ter sido obrigada a abraçar aquele peito cabeludo todas as vezes que ele queria se desculpar; o gosto musical que herdei; os ensinamentos profissionais, sobretudo de ética e postura; o combustível interminável para lutar pelas minhas causas; o sentimento de que, muito mais do que se poder ver, o que realmente importa é o que se planta de bom na vida do outro.
Não me arrependo de ter esperado tanto para reconhecer tudo isso. Eu sou o reflexo dele, que teria feito o mesmo. Mas há em mim uma imensa felicidade – no lugar da esperada tristeza -, que me faz, neste Dia dos Pais, ter orgulho e carregar por aí a estrela solitária que tatuei em homenagem ao botafoguense mais fanático do Brasil e que por diversas vezes tentou me comprar para que eu deixasse de ser flamenguista; e este coração sensível e amistoso (por vezes até bobo) que ele gerou.
Neste Dia dos Pais (e nos dos últimos três anos) nenhum sentimento além de gratidão tem lugar no meu peito. O que sou, a mulher na qual me transformei e os maiores valores que carrego se devem a esse homem, meu pai.
A todos os homens inspiradores, distantes de nomearem-se heróis, mas nossos humanos mais admiráveis: obrigada!
Lanier Rosa