Bernardo Lins, filiado ao Sindilegis, é doutor em economia pela UnB, consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP). No dia 16 de março, o servidor escreveu uma crônica sobre conflito geracional na Revista Pub – Diálogos Interdisciplinares, uma publicação eletrônica do IBAP.
Em seu texto, ao se aposentar e se ver como um “velhinho em tempos de geração Z”, Bernanrdo reflete sobre as diferenças entre as gerações, utilizando a teoria de Mannheim como ponto de partida. Ele observa as críticas dos seus contemporâneos à Geração Z, como a falta de disciplina e comprometimento no trabalho, mas questiona essa visão ao comparar o comportamento dos jovens de hoje com a rebeldia dos baby boomers no passado.
O autor também sugere que a Geração Z, nascida na era da internet, manifesta sua insatisfação com o sistema capitalista de forma implosiva, buscando alternativas e questionando as relações de trabalho tradicionais, o que o leva a expressar o desejo de adotar essa “irresponsabilidade alegre” diante de um futuro do trabalho incerto e com vínculos empregatícios mais frágeis. Leia o texto na íntegra abaixo.
Quero ser da geração Z, por Bernardo Lins
Há algum tempo, me aposentei. Meu carro bateu na placa dos 65 anos de idade. A polícia do capitalismo deu uma passadinha, olhou o estrago e me avisou: “Amigo, seu tempo acabou, está na hora de buscar novos rumos. Se você fez o pé-de-meia financeiro e emocional, vá curtir umas férias. Se não fez, aprenda a viver com o que sobrou ou busque uma renda alternativa. Mas a fila anda, lamento informar”. Estou livre, leve e solto. Virei um velhinho em tempos de geração Z. E descobri que tenho vontade de me comportar como eles.
Desde que Karl Mannheim criou a teoria das gerações há uns cem anos, passamos a raciocinar desse jeito. A cada quinze ou vinte anos alguns fatos notáveis condicionam o modo como as pessoas que são jovens naquele momento olham para a vida, encaram suas tragédias e tomam suas decisões, das mais prosaicas às que determinam seu futuro e o destino da geração seguinte.
Como toda construção lógica, trata-se de um modelo. Não significa que o mundo real funcione assim. O que se ajusta é a nossa visão dele. Um modelo é como óculos. Põe algumas características em foco e mancha a visão de outras.
O olhar para gerações põe em foco os conflitos entre grupos de faixas etárias distintas, que enfrentam em dado momento desafios próprios do seu momento de vida. Enquanto as crianças brincam, os adolescentes enfrentam seus primeiros desejos, os jovens adultos seu primeiro emprego, as pessoas maduras sua construção de um patrimônio, os velhos seu decaimento. O modelo geracional nos diz: isso é igual ano a ano, mas a diferença é que cada grupo traz consigo uma história distinta e uma ideologia dominante. Seu comportamento segue a trilha dessas peculiaridades. A visão de longo prazo, dada pela geração, explica essa evolução.
Se olharmos os que ainda estão vivos, identificamos meia dúzia de gerações distintas, muito celebradas na imprensa e nos livros de autoajuda. A geração silenciosa, pessoas que em 2020 tinham 75 anos ou mais, entraram na vida adulta a partir de 1945. Os baby boomers, nascidos entre 1946 e 1966, entraram no mercado de trabalho a partir de 1965. A geração X, pessoas nascidas entre 1966 e 1981, iniciaram sua trajetória a partir de 1985. Os millenials, nascidos entre 1981 e 1996, entraram na vida adulta a partir de 2000. Já em 2020 quem iniciou sua vida adulta foi a geração Z, os nascidos entre 1997 e 2009. A geração alfa, os nascidos após 2010, ainda estão a caminho.
Quando tomo um cafezinho (quase ponho uma crase, sou um velhinho de três reformas gramaticais atrás!), os amigos de lanchonete, todos coroas ou velhinhos também, reclamam horrores dos neófitos da geração Z. Do amontoado de amarguras despejadas na mesa, destaco algumas que quase sempre se repetem: esses “meninos” não têm disciplina de horário, não mostram capacidade de se concentrar em tarefas complexas, não vestem a camisa da empresa, como aprendemos em nosso tempo de trainees, e acham que sabem tudo, sendo reativos a orientações e lideranças.
Não é bem verdade, o panorama é obviamente mais complexo e mostra matizes de todas as cores. Conheço pessoas de dezenove ou vinte anos de idade que possuem uma capacidade de trabalho, uma concentração e uma acuidade de análise que eu, na velhice, já não lembro de ter demonstrado. E, mesmo que assim fosse, o que os diferencia de uns primos mais velhos que tive, que protestaram nas ruas, usaram cabelos compridos, se vestiram de ripongas e criticaram veementemente a repressão do sistema, odiando a ideia de um emprego e de um chefe?
É nesse ponto que a discutível teoria das gerações mostra alguma utilidade. Se há alguma semelhança entre pessoas separadas por meio século, quais são as diferenças?
Em maio de 1968, os baby boomers de então viviam em plena guerra fria, ameaçados pelas instituições de então, reprimidos por pais convencionais que temiam por eles, sendo proibidos de se expressar. Aqueles que tiveram a coragem da rebeldia promoveram um movimento explosivo, às vezes em passeatas, às vezes em festivais de rock, em outras circunstâncias na militância e na guerrilha. No conjunto, eram uma minoria, mas o movimento foi surpreendentemente global, indo de Paris à Cinelândia, de Praga a Woodstock, do Japão a Tlatelolco. Enfrentaram uma repressão brutal: mortes em praça pública, torturas nos porões das ditaduras, perseguições pelas polícias políticas, convocações para lutar no Vietnã e por aí vai.
A reação da geração Z é, em contraponto, implosiva. São jovens que nasceram em tempos de internet comercial. Viram o surgimento das redes sociais, aprenderam a acompanhar influenciadores digitais, falam o que querem e com quem eles acham que querem, sentindo-se protegidos por um ilusório anonimato ou por máscaras de avatares. Suas personas digitais desfrutam de liberdade e autonomia no mundo virtual. É fácil ser assertivo nesse contexto e eles levam essa atitude ao dia a dia da realidade, colocando em xeque as relações capitalistas não pelo protesto, mas pela busca de atalhos alternativos. Cada um desses meninos poderia dizer, parodiando o Rei Sol, “le capitaliste, c’est moi”.
Como gerenciar alguém assim?
Meus amigos de lanchonete meneiam a cabeça. Mimados e malcomportados, esses rapazes e moças passam a perna no empregador. O trabalho presencial é um ambiente de resistência passiva, em que o voluntarismo se sobrepõe às obrigações. O trabalho remoto, um convite a múltiplos empregos em que o insubmisso raspa os ganhos de cada contratante e corrói os pressupostos éticos da relação assumida com cada um. A única alternativa, dizem eles, parece ser uma difícil combinação de melhor seleção de candidatos e de treinamento mais inteligente (afinal, o chefe muitas vezes é mais medíocre do que o chefiado). Não será fácil porque, cá para nós, esses meninos sabem tudo mesmo. A internet é uma fonte de informações infinita, ainda que desordenada, discutível, às vezes desavergonhadamente mentirosa.
E eu quero ser assim. Quero ser um velhinho da geração Z. O emprego foi essencial na minha vida não só pelo salário, mas porque foi no trabalho presencial que aprendi os ofícios que exerci, fiz meus melhores amigos, fui amado e respeitado pelo meu cartão de visitas. Mas isso terminou. Hoje aprende-se pelo ensino a distância e pelas lives, ganham-se amigos e amores pelo tinder e pelo tik-tok, em vez do cartão de visitas vale o número de curtidas e redirecionamentos de posts e reels. As empresas dão a impressão de que já não empregam por uma vida, contratam por projeto. Como ser fiel a alguém que, você desconfia, um dia vai cuspi-lo como chiclete?
Esse é o novo mundo do trabalho, inseguro, que vai deixar a todos no solo quando, aos 65, descobrirem que o carro bateu na placa. Mas, desconfio, com uma oferta de irresponsabilidade alegre que eu desconhecia, para o bem e para o mal.
Leia o texto de Bernardo Lins, em sua publicação original, pelo link abaixo: