O ano é 2020… e estamos discutindo “estupro culposo”

Na tarde da última terça-feira, 3 de novembro, uma notícia digna de sinopse de filme de terror tomou conta dos jornais brasileiros. O portal The Intercept estampou em letras garrafais: Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de “estupro culposo” e advogado humilhando jovem. A reação imediata foi de espanto: “Como assim? Estupro culposo não existe!”. Então, lemos a matéria.

Mariana Ferrer é uma influenciadora digital catarinense que acusou o empresário André Aranha de tê-la estuprado em um evento no Café de La Musique, em Florianópolis, dois anos atrás. Ela denunciou, em suas mídias sociais, que foi vítima de violência sexual no dia 15 de dezembro de 2018. Contou que era virgem na época do crime, foi dopada e estava inconsciente no momento da violência. Exames periciais confirmaram que o esperma encontrado na roupa da jovem – suja de sangue – é compatível com o DNA de Aranha.

Mariana fez tudo o que a sociedade espera que uma mulher faça em situações de violência: buscou os mecanismos legais de proteção, denunciou seu algoz e pediu justiça. Não é isso que sempre cobram da vítima? “Mas é só denunciar. Por que ficou fazendo texto nas redes sociais e não denunciou o cara?”. Pois bem.

Na audiência de instrução e julgamento, o advogado do reú, Claudio Gastão da Rosa Filho, atacou a vítima e tentou de todo jeito humilhá-la, exibindo fotos sensuais dela no intuito de deslegitimar o argumento do estupro, animado pelo silêncio omisso do juiz e do promotor. Em setembro deste ano, o desfecho surpreendente: o juiz Rudson Marcos, atendendo à argumentação do Ministério Público, absolveu Aranha e pôs fim ao julgamento desastroso. Para o promotor Thiago Carriço, que definiu o crime como “estupro sem dolo”, o réu não teve a intenção de estuprar, porque não havia como ele saber durante o ato sexual que a jovem não estava em condições de consentir a relação. Sim, foi isso mesmo que você leu.

Agora, voltemos no tempo até 1976. Doca Street é julgado por ter matado, com quatro tiros, a esposa Ângela Diniz. O homem invoca a “legítima defesa da honra” – figura jurídica que nunca existiu no Código Penal brasileiro –, argumentando ser um tipo de legítima defesa, cuja lógica é de que a honra faz parte da pessoa, assim como os órgãos ou a própria vida, e por isso a pessoa pode matar para protegê-la. Ele é inocentado, e a história vira a série da Netflix “Coisa mais linda” e o podcast “Praia dos Ossos”. E se você acha que isso é coisa do passado, saiba que, em 2017, um homem agrediu com facadas a ex-companheira em Minas Gerais e foi absolvido pelo tribunal do júri com base nesse velho argumento. Pensando bem, a ficção não é páreo para a realidade brasileira do século 21.

As atrocidades relatadas não foram incidentais, assim como a impunidade dos réus não foi por acaso. As mulheres conhecem bem o peso do machismo: sabem o que é viver em um mundo onde os mecanismos que deveriam protegê-las não as protegem. Sabem o que é morar em um país onde ocorrem 180 estupros por dia e onde o sistema de justiça acolhe a tese de que os acusados não têm a intenção de estuprar. Sabem como esse argumento perpetua aquele da “legítima defesa da honra” e como ambos escamoteiam o machismo doloso dos homens brancos que julgam as leis.

Vivemos tempos sombrios, não há dúvida. Tempos em que se finge não ver a violência perpetrada contra as mulheres, tanto na esfera doméstica quanto nos espaços institucionais. Ontem foi com Mariana. Mas já havia acontecido com Marias, Letícias, Cláudias, Lúcias, Genirs, Martas e tantas outras que faltam espaço neste texto para citarmos. Nós, do Sindilegis, trabalhamos incansavelmente para dar rostos a esses nomes; para dar voz e espaço para nossas filiadas. Lutamos por oportunidades iguais, por maior representatividade de mulheres dentro e fora do Legislativo, pelo fim da discriminação e da violência. Somos parceiros e cerramos fileiras nessa luta tão desleal e ainda tão longe de ter fim, pelo andar da carruagem.

Em 2018, tomamos os corredores do Congresso Nacional com nossa campanha “Florzinha é bom, mas direitos iguais é melhor”. Em 2019, abraçamos novamente nossa Casa – a Casa do povo – e bradamos em alto e bom som “Xô, machismo!” na tentativa de desconstruir objetos comumente ligado às mulheres e provocar o debate interno sobre o tema. Mas ainda há muito a ser feito.

O ano é 2020. Estamos discutindo a nova nomenclatura para homens saírem impunes dos atos de violência sexual: estupro culposo. Temos uma instituição – a Justiça – que deveria acolher as vítimas da violência e nunca submetê-las a humilhação nem a tortura psicológica. Temos operadores do direito que deveriam respeitar a dignidade das vítimas, e não buscar novas fórmulas para ferir os direitos humanos das mulheres e das meninas. Basta! Precisamos de justiça, não de violação institucional!

Ninguém pode mais fechar os olhos para esse tipo de crime. Precisamos de mecanismos funcionais, atuais e capazes de livrar as mulheres de todo tipo assédio e crime. Precisamos dar apoio às mulheres vítimas de violência, que não sabem como sair do círculo vicioso e, muitas vezes, acabam retornando ao convívio com seus parceiros abusivos por falta de proteção. Precisamos proteger as meninas e os meninos. Precisamos ensinar as consequências do machismo, da violência de gênero, do silenciamento feminino, do medo de morrer simplesmente por ser mulher. Precisamos mudar o atual cenário, para que esse não seja o assunto da hora em 2050.

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