Sindilegis Indica: ‘Ainda Estou Aqui’, ganhador do Oscar

Para o Sindilegis Indica desta semana, a equipe de Comunicação estreia o subproduto da nossa curadoria cultural: o Fora da Caixa, que abrangerá produções artísticas fora do Legislativo. Para essa primeira dica, o nosso time chamou a conselheira fiscal do Sindilegis pelo TCU, Sandra Elizabete Alves, para escrever uma resenha sobre o filme ‘Ainda Estou Aqui’, de Walter Salles, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025. O filme foi a primeira produção brasileira a ganhar o prêmio. Leia abaixo!

Opinião

O filme Ainda Estou Aqui trouxe à luz a história de Eunice Paiva, mãe de cinco filhos, esposa do ex-deputado Rubens Paiva, cassado e posteriormente sequestrado e morto pela ditadura militar, sensivelmente interpretado por Selton Mello. A força dessa mulher brasileira contagiou o Brasil e encantou o mundo, a partir das memórias de seu filho e autor do livro, Marcelo Rubens Paiva, da genialidade do diretor Walter Salles e da interpretação esplêndida de Fernanda Torres, já premiada no Globo de Ouro e indicada ao prêmio de melhor atriz principal do Oscar. A personagem real, Eunice Paiva, é uma prova do protagonismo das mulheres mesmo diante de uma situação de dor extrema batendo inesperada e literalmente na porta de casa. Trata-se de uma grande mulher que foi fielmente interpretada por uma grande atriz. O universo conspirou e decretou que dessa conjunção sairia uma obra prima.

A parte inicial evidencia a vida feliz da família Paiva, em um casarão no Leblon, de frente para o mar, com um quarto para cada uma das cinco crianças, muita música, festas, e portas abertas para os amigos. Rubens Paiva era engenheiro, com projetos em andamento.  São cenas comuns de uma família de alto padrão. A protagonista havia sido criada para ser a esposa perfeita, que não precisava trabalhar fora. A alegria era permeada por aquele clima de constante aflição pelo medo da repressão violenta da ditadura. A família era culta e politizada. Rubens Paiva reunia-se com amigos para ajudar exilados e perseguidos pelo regime, transmitindo recados para familiares e amigos. Por detrás desse clima, a presença do estado é como uma sombra, uma ameaça constante, que a protagonista teme a cada ligação telefônica recebida. Esse suspense perpassa o filme inteiro e vai criando no espectador grande emoção e perplexidade.

Na segunda fase do filme, esse cenário de leveza, alegria e luminosidade desaparece e dá lugar a cenas e ambientes sombrios. É quando, em janeiro de 1971, os agentes do estado foram até a casa de Rubens Paiva e o levaram para “interrogatório de rotina”. Desde então nunca mais foi visto. Chama a atenção a estratégia do diretor de não retratar a violência direta sofrida por Rubens Paiva na prisão em nenhum momento do longa. Essa opção de não explorar os atos de violência física e tortura psicológica contra o ex-deputado é inovadora e criativa. A força da obra reside não em cenas cruas de violência, mas sim em demonstrar a violência estrutural do governo militar.

A terceira etapa se passa 25 anos depois, quando Eunice Paiva, já uma advogada reconhecida, consegue finalmente a certidão de óbito de seu marido, atestando que ele era desaparecido. Essa fase demonstra que a família aceitou a dor, e conseguiu seguir com suas vidas. Nos atos finais, a Eunice octogenária é interpretada pela Fernanda Montenegro, em aparição breve, porém muito emocionante. Na vida real traumática dessa família, somente agora, em janeiro/2025, a certidão de óbito foi corrigida para constar que Rubens Paiva desapareceu em 1971 e teve morte não natural, mas sim violenta causada pelo Estado.

É extraordinária a performance de Fernanda Torres como Eunice Paiva, viúva, se reinventando para conduzir a família após o sequestro e desaparecimento do marido. Esta tragédia despertou a mulher poderosa, forte e resiliente, que voltou à faculdade de direito, tornou-se advogada de direitos humanos e se engajou em lutas sociais e políticas, como a defesa do direito dos indígenas e suas reservas. Em entrevista à CNN Internacional, Fernanda destacou que fez uma interpretação contida de Eunice Paiva para ser fiel à dignidade dela, não podendo fazer da vida de Eunice um melodrama. A atriz brilha em todos os momentos. Enternece a cena de desespero reprimido de uma mãe que, para proteger a infância de seus filhos, escondeu o quanto pode a real história do desaparecimento do pai. Os gestos contidos da personagem eram traídos pela expressão de dor insuportável, que a Eunice da vida real tentava disfarçar a todo custo na frente dos filhos. Eles foram sabendo da morte de seu pai cada um a seu tempo. A primeira a descobrir foi a mais velha. Havia um resquício de esperança de que ele um dia voltaria para casa.

O longa mostra a tragédia com muita intensidade e ao mesmo tempo sutileza. A ditadura é apresentada por Salles sem panfletagem, mas com realismo e riqueza de cenários e detalhes. A obra não aborda a estética da fome, em que a pobreza é um tema explorado e maquiado para vender, e que por vezes resvala no grosseiro. A estética da fome pautou principalmente o cinema novo. O filme não é sobre isso, mas sim sobre a história de uma família, ele é universal. O foco do filme é a abordagem da violência estrutural e cultural do regime militar, e a necessidade de preservar a memória das vítimas da ditadura.

A obra de Walter Salles tem causado impacto. Num período em que alguns flertam com o fascismo e a ditadura militar, Ainda Estou Aqui é o retrato das consequências nefastas da ditadura, que tanta dor causou. O fato de estarmos assistindo a radicalização e a repressão em muitos países faz o filme atual. A “caça às bruxas” contra os comunistas, que resultou no assassinato de centenas de manifestantes na ditadura, tem se delineado no presente. Walter Sales comentou em entrevista à CNN Internacional: “Enquanto o filme era acolhido pela audiência no Brasil, ficamos sabendo pelas investigações da Polícia Federal que havia um plano para matar o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula, e o vice presidente Geraldo Alckmin. É, mais do que nunca, um filme sobre hoje”.  Os atos extremistas pedindo sem pudor a volta da ditadura fazem ver que a sombra do mal continua à espreita. Temos que ficar atentos.

Contudo o filme, por ser um drama simples e universal, não atinge muitas paixões políticas do momento, exceto algumas bolhas extremistas. E ficou o mais próximo possível da linguagem do Óscar, que tem predileção por produções que reverberem em audiência de qualquer nacionalidade. O resultado foi o prêmio recebido na categoria “Melhor Filme Internacional”, além de indicação para “Melhor Filme” e “Melhor Atriz”. Ainda Estou Aqui ganhou ainda prêmios em muitos outros festivais internacionais, como o Globo de Ouro como melhor atriz para Fernanda Torres. Essas conquistas internacionais inauguraram um avanço e nova fase do cinema brasileiro. Demonstram a valorização da nossa arte no cinema, que vem sendo lamentavelmente tão atacada.

Quando foi transmitido o Oscar, em pleno carnaval, tivemos um clima de copa do mundo. Fernanda Torres virou fantasia de carnaval, dando uma ideia do reconhecimento das pessoas pelo trabalho da atriz. O Óscar ganho pelo filme foi dedicado pelo diretor Walter Salles para Eunice Paiva, cuja história de luta comoveu a todos e inspirou o filme. A lembrança da grande Eunice Paiva como figura emblemática da resistência à ditadura militar tocou para sempre os corações e mentes e nos traz esperança de dias melhores.

Por Sandra Elizabete Alves

Servidora do TCU

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