Nonato Freitas

Nonato Freitas, nascido no Ceará, é um jornalista, poeta e pesquisador que posteriormente se estabeleceu no Distrito Federal. Com formação em Letras e Literatura Portuguesa, também se pós-graduou em Literatura Brasileira pela Universidade Católica de Brasília. Durante sua trajetória, associou-se a José Américo de Almeida na composição do prefácio para a “Antologia Ilustrada dos Cantadores”, uma obra fundamental para estudos sobre a poética dos trovadores. Além disso, Freitas integra o Coletivo de Poetas, com o qual contribuiu para a criação de “Linguagens e Brasilidade”. Tem em seu repertório obras como “Costurando a Chuva” e “História da Cantoria – Os 300 Maiores Improvisos de Todos os Tempos”. Seu talento não se limita à escrita; ele também é coautor de um documentário produzido pela TV Senado chamado “O Homem que Viu Zé Limeira”.

Seu envolvimento com a literatura e a cultura brasileira é profundo. Nonato Freitas viveu em Teresina (PI) antes de fixar residência em Brasília. Seus esforços enquanto ensaísta, palestrante e membro ativo do Coletivo de Poetas ampliaram sua influência no cenário literário. Nonat, além de suas contribuições escritas, é reconhecido como o idealizador e coautor do documentário sobre Orlando Tejo, o autor do aclamado “Zé Limeira, Poeta do Absurdo”, transmitido pela TV Senado. Este trabalho gerou discussões sobre a possibilidade de Zé Limeira ser uma criação fictícia de Orlando Tejo.

NAU SEM RUMO

O meu soneto, amigo, não tem flores!
Não tem luar, estrela, e nem cantigas!
Não tem, sequer, o cheiro dos amores
que a gente guarda das paixões antigas!

Não tem rubis, cristais, e nem as cores
que a luz do sol despeja nas espigas!
Na trombeta do peito eu canto as dores!
No canteiro dos sonhos planto urtigas!

Nau sem destino, os mastros já quebrados!
Ante a tormenta, os sonhos naufragados,
Louco, sem rumo, pelo mundo a esmo…

Vivo carpindo os abissais caminhos.
Bebendo a taça desses falsos vinhos,
Virando o mundo em busca de mim mesmo!…

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Mulher preta
mulher branca
parda ruiva ou amarela
cor de jambo bronzeada
morena cor de canela
sendo mulher qualquer cor
combina sempre com ela!
Deus ao criar a mulher
não fez distinção de cor
preferiu tintas do Amor
sem precisar de aquarela!
Com divina sapiência
extraiu da Inteligência
toda luz, toda energia!
De um frasco azulvagalume
sorveu o doce perfume
que há na flor da Poesia!
De outro, toda a pureza,
todo o sol, toda a beleza,
que há na Sabedoria!
Untou tudo com os óleos
sagrados com muita estima,
sem cerimônia qualquer,
deu tudo isso à mulher,
a sua eterna obra-prima!!
(NF)

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Passarim é assim mesmo, Zé! Aliás, os bichos do mato, notadamente os bichos miúdos, são todos assim. É o borbulhar assombroso da geopoética, abundante na obra encantada de Guimarães Rosa.
Veja o exemplo das formigas.
Na casa da gente, para afastar o vazio e o amargo da vida, vivem a devorar os grãozinhos de açúcar que encontram pelo caminho.
Com isso, elas vão eliminando parte do veneno que o homem joga dentro de suas próprias casas.
No longe das matas, sítios e cerrados, sob a proteção da mãe natureza, essas criaturinhas de Deus vivem a espantar o tédio nas caminhadas que fazem pelas veredas solitárias da vida.
Você já reparou que as formigas gostam de conversar entre si?
Em sua faina diária, elas carregam sobre as costas pesadas lascas de lenha e às vezes toras de madeira que medem até dez vezes o tamanho da mais raquítica formiguinha!
Não sei se as formigas carregam dentro da alma, se é que formiga tem alma como nós, os fardos pesados que carregamos. Acho que não.
Esses fardos pesados que trazemos sobre os ombros são tatuagens malditas de nossos egoísmos. Ou estarei enganado?
Zé, ao contrário do bicho homem, formiga não esconde por detrás do riso os afiados caninos das hienas.
Não costumam também dar tapinhas fingidas nos ombros dos amigos e amigas.
Simplesmente porque as formigas repudiam simulação, coisa que entre nós humanos é arte.
Outro fato: as formigas não se deixam enganar pelos falsos guizos.
Elas trazem decorada na cabeça a trágica história de Fausto, o cara que vendeu a alma ao diabo em troca de toda sorte de regalias.
Fausto esqueceu que o poder é transitório, algo que tem a duração de um relâmpago. Quando menos se espera a fogueira da vaidade vira pó.
Dotadas de infinita sabedoria, as formigas farejam e adivinham a corrida velossíssima do tempo.
Rosa e Pinheiro vicejantes pela manhã.
Mas a tarde logo virá. Em seus braços de megera ela trará a outrora esplêndida rosa, agora esmaecida e murcha.
Tombado sob os golpes impiedosos do machado do tempo, o frondejante Pinheiro será apenas madeira para ataúde.

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O TREM DO BAÚ

o trem corria
O trem zunia…
Passava a ponte
passava o rio
passava a fonte
enquanto isso
nesta folia
Baú sorria
com alegria
subindo o monte!
Na sua alucinação
Baú queria subir pro céu
e pedir a Nosso Senhor
uma locomotiva azul!
Um trem de verdade!
Todo azul!…
Igual ao trem azul
que a RVC acabara
de botar na linha!!
O trem do Baú apitava
com uma imensa
tristeza,
a mesma tristeza que pingava
dos olhos moribundos
do finado Nascimento, assassinado a facadas
no calçadão da estação do trem…
Tac, tac, tac
piuí, piuí, piuí,
a Maria Fumaça
do Baú engolia
a comprida ponte
encarnada
de Quixeramobim
vomitando no breu da noite
toneladas de brasas
sobre o espelho das águas do Ibu,
que corria placidamente
lá embaixo…

O trem imaginário do Baú passava o tempo todo
pra cima e pra baixo!
Correndo desembestado
pela rua do Pau d”arco,
rua das Flores,
rua do Cisco,
rua da Lama,
e pelas empoeiradas ruas do Tabuleiro!
Numa noite de lua cheia
Baú partiu de mãos dadas com Neném Meu Bem,
a aluada Neném Meu Bem, o rosto
espiritado de ruje,
os lábios sangrando felicidade no Coty
barato comprado na feira
do sábado.
No desvario de Baú
e Neném
São Jorge
esperava por eles
sentado num tamborete dentro da lua cheia.
Tac, tac, tac,
piuí, piuí, piuí,
os dois parvos se enfiaram
linha afora no rumo do Quincoê.
Já iam além da curva do Julião
quando o expresso da meia-noite apontou
bufando no corte
do Serrote Preto.

O olho de fogo do trem bateu alucinado dentro
dos olhos ariados
de Neném e Baú.
PLUFF!
A pancada estremeceu
todo o vale do Quincoê.
Nos delírios finais
Baú e Neném Meu Bem
subiram os degraus da Lua Cheia e ali,
juntinhos ao cavalo branco
de Ogum,
entre foguetes e batuques de tamborins,
os dois receberam das mãos do santo guerreiro
o tão sonhado trem azul!…

No dia seguinte,
a manchete do jornal
estampava em letras garrafais:

“Casal de doidos esmagado
pelas rodas do Trem Azul”!

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As sombras da noite galopavam na vastidão do mar
no longe das águas
a nau catarineta bebia
pingos da lua cheia!
Ondas frenéticas subiam
no alto da torre
para salvar Ismália
do afogamento
em vão tentaram
um anjo esperto
chegou nas asas da ventania
e arrastou a moça para
além dos portais do céu
apenas seu corpo desceu ao mar
uma persistente neblina
caía nos
becos escuros do morro
o vento zunia na
palha do coqueiro
batuque de tamborins
velha canção
de Zé Keti
tanto riso
tanta alegria
mais de mil palhaços
no salão
trepado no dorso
de uma furtiva onda
O Aracati trazia na concha das mãos
labaredas de tentações
Arlequim arrancou a blusa molhada
que cobria de volúpia os seios tentadores de Colombina
e ali na alcova das dunas do Mucuripe
as duas almas em êxtase
ao sopro da brisa
ouvindo o piano das penedias
fizeram amor
até a barra do sol quebrar
nas brancas escumas
da quarta-feira de cinzas…
Num canto qualquer da praia,
o sal lambia as feridas de Pierrot!

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HIPOCRISIA

O beijo em Cristo, essência que destila
ódio e rancor — prazer da humanidade!
Funesto olhar, nos lábios de Dalila
sangrava amor no mel da falsidade…

Nas trevas do seu beijo, por maldade,
Judas traiu! E nós, com a mesma argila,
com o mesmo pó da falsa santidade,
beijamos Cristo na sedenta fila…

Mas ele, piedoso, lá de cima,
derrama graça às almas tão miúdas…
Pois o amor para Deus é obra-prima!

A humanidade? É mesmo um grande quisto…
Em cada um de nós habita um Judas!
O diabo em vida disfarçado em Cristo!…

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CONTRIÇÃO

Oh grande Deus, vos peço arrependido!
Aos vossos pés, a vossa piedade!
Da minha cruz vos faça reduzido
O peso milenar pela metade!

Ao menos isso, Senhor, por caridade!
Posto que há muito aqui eu hei sofrido!
Nas trevas abissais da iniquidade,
Eu vos confesso, Senhor, eu hei vivido!

Entre os bilhões de seres espalhados
Nas galáxias perdidas do universo,
Entre os gemidos e ais dos desgraçados,

Eu sou mais um vagando aqui perdido…
Eu vos rogo, Senhor, por meus pecados!
Que eu não seja por vós nunca esquecido!

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